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Exercícios práticos: os mestres esquecidos

Eu moro no centro de Almada desde os 8 anos e gosto muito de morar aqui, mas nasci num dos bairros mais fixes duma das cidades mais fixes do mundo: como costumo dizer a gozar com a minha própria pronúncia, sou “lexboeta de Camp d’Órique”!

Campo de Ourique é um bairro do final do século XIX e foi sempre um bairro de artistas, até tem uma rua onde os prédios foram feitos de propósito para ateliers de escultura e pintura, e os nomes de algumas ruas são os de artistas que foram famosos no século XIX. Agora pouca gente ouve falar deles, porque a geração que se lhes seguiu ficou mais famosa e o Modernismo acabou de os eclipsar completamente. No seu tempo estudaram no estrangeiro, foram mestres nas Belas Artes, foram professores particulares de príncipes e princesas e pintaram quadros para a Corte; agora são, para a maioria dos lisboetas, apenas nomes de ruas. É sobre eles que quero fazer hoje um post dedicado a quem estuda artes plásticas.

Domingos Sequeira (1768-1837) foi criado na Casa Pia, estudou na Academia Portuguesa em Roma, foi pintor da Corte e professor de princesas e trabalhou nas pinturas do Palácio da Ajuda. Tomás da Anunciação (1818-1879) estudou na Academia de Belas Artes de Lisboa e foi lá depois professor de Malhoa e Silva Porto. Francisco Metrass (1825.1861) estudou também na Academia de Belas Artes de Lisboa e ainda em Roma e Paris e depois de uns anos de anonimato acabou por ser muito apreciado, inclusivé pelo rei D. Fernando II, marido de D. Maria II (o responsável pela existência do Palácio da Pena) e por ser professor de pintura histórica na Academia de Belas Artes de Lisboa.

Vale a pena conhecer estes pintores? Sim, por três razões:

  1. quanto mais imagens encherem a nossa cabeça mais material temos com que trabalhar para criar imagens novas. A criatividade não é apenas imaginação, é retrabalhar tudo o que se aprendeu, é reciclar tudo o que existe e dar-lhe uma nova forma

  2. estes pintores tinham um desenho bastante narrativo, por isso desenhar e pintar a partir deles é muito útil para quem quer fazer banda desenhada ou ilustração

  3. a composição cromática de alguns quadros desta época é muito boa para aprendermos a abstrair-nos da forma e ver só a cor

Comecemos pelo desenho. Temos aqui uma vista da Amora e do rio Tejo, por Tomás da Anunciação. (Reconhecem sem os prédios, pessoal da Margem Sul?).

E aqui uma sugestão minha de desenho, suprimindo as personagens e reduzindo os valores a branco, preto e cinzento.

Esta é a primeira fase do desenho...

... e esta é a segunda, em que acentuei os negros.

É um excelente exercício para aprender a não fazer tudo do mesmo valor lumínico e a suprimir o que interessa menos. E é mais fácil de fazer a partir dum quadro como este que de uma fotografia ou, mais difícil ainda, do real, daí que seja óptimo para principiantes.

Agora outro quadro de Tomás da Anunciação, desta vez uma vista da Penha de França.

A minha sugestão é uma versão colorida da anterior: reduzir as cores à sua expressão mais simples, mantendo a ideia de claro-escuro e a separação clara dos planos.

Como vêem fica muito simples mas mantem todas as características narrativas e dava uma boa paisagem para uma ilustração muito pequena, porque nestas os pormenores só estorvam. (Podem aproveitar, como eu fiz, para misturar materiais; eu pintei com lápis de cor e com canetas de feltro de tinta aguarelável).

Outro exemplo, este mais difícil: simplificar figura humana, a partir dum quadro de Francisco Metrass. O quadro representa D. Inês de Castro a agarrar nos filhos para se pôr em fuga, porque acaba de saber que a vão matar.

E agora o desenho quase esquemático que sugiro como base para futuros estudos de banda desenhada (mais uma vez, para ilustrações pequenas):

E agora um exemplo de um exercício que só faz é bem a quem quer aprender a pintar e não consegue compreender que um quadro se deve sempre julgar de maneira abstracta, mesmo quando é altamente figurativo e com um sentido definido: vamos desfocar uma composição religiosa de Domingos Sequeira.

O quadro tem um significado muito claro: a adoração dos Reis Magos e através deles a do mundo inteiro ao Menino Jesus. Quem for desprovido de sentido estético olha para aqui e não vê mais nada senão esse significado. (Embora, se for erudito, consiga discursar durante horas sobre este tema!). Agora vamos vê-lo como abstracto:

Já perceberam a diferença entre olhar para um quadro e olhar para uma descrição narrativa e uma dissertação sobre simbolismo? A partir desta imagem desfocada podem fazer-se vários estudos abstractos.

Agora explorem a net e a vossa biblioteca local à procura de mais mestres esquecidos e aprendam com eles, é esse o meu conselho!


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